Especialista explica os motivos que fazem da lesão de LCA uma das principais vilãs do futebol feminino.
O mês de outubro encerrou com mais de 10 atletas no futebol feminino mundial diagnosticadas com lesões no ligamento cruzado anterior. O caso mais recente foi a da atacante do Palmeiras, Laís Estevam, que sofreu a contusão no amistoso contra a Itália e não retornará mais aos gramados na reta final da temporada. A jogadora voltou a jogar a pouco tempo após se recuperar de uma lesão no menisco do joelho esquerdo e ficou de fora da Copa América Feminina.
Nomes como Michelle Agyemang (Arsenal), Clare Goldie (Celtic), Giovanna Hoffmann (RB Leipzig), Liana Joseph (OL Lyonnes), Maite Oroz (Tottenham), também sofreram com a grave lesão de ligamento cruzado anterior (LCA) e ficaram de fora das competições que participam. O número de casos preocupa e estudos alegam que as mulheres têm de duas a seis vezes mais chances de sofrer esse tipo de ruptura do que os homens, ficando vulneráveis a extensas atividades no futebol.

O QUE É LIGAMENTO CRUZADO ANTERIOR?
O ligamento cruzado anterior (LCA) é o responsável pela junção da tíbia ao fêmur, dois elementos muito importantes na parte de locomoção das pernas, e tem como principal função na estabilização dos joelhos, sobretudo nos movimentos laterais. As lesões nesse ligamento, classificadas como estiramentos, variam de acordo com a gravidade.
No grau 1, ocorre um estiramento leve, com pequenas fibras danificadas, mas ainda capaz de manter a articulação estável. No grau 2, há um estiramento mais intenso, caracterizado pela ruptura parcial do ligamento, que começa a se soltar da articulação. Já o grau 3 representa a forma mais grave, quando o LCA se rompe completamente, dividindo-se em duas partes e resultando em instabilidade significativa no joelho. Normalmente, as atletas passam por complicações no joelho no nível de lesão de número 3.
O mecanismo mais comum de lesão do ligamento cruzado anterior no futebol ocorre sem contato físico, geralmente em movimentos bruscos de mudança de direção ou aterrissagem. A ruptura provoca dor imediata, sensação de instabilidade e um sangramento interno rápido, já que o LCA é revestido por uma camada altamente vascularizada. Por isso, é raro que a atleta consiga permanecer em campo após sofrer esse tipo de lesão e, na hora de se recuperar, precisa retornar com muita cautela aos gramados.
Em uma entrevista exclusiva ao DONAS FC, a Dra. Flávia Magalhães, médica e nutricionista esportiva referência em prevenção e performance no futebol, com ênfase em lesões e cuidados integrados de atletas, destacou que o principal fator para o alto índice de lesões nas mulheres é a baixa capacidade neuromotora e a entrada tardia no esporte, o que reduz habilidades específicas e consciência corporal. Ela também destaca que trabalhos de força, mobilidade e prevenção ainda são negligenciados e chamou atenção sobre a falta de um departamento médico estruturado nos times, com acompanhamento diário e avaliações contínuas.

Para ela, a solução começa na base, com avaliações cuidadosas e acompanhamento longitudinal das atletas desde cedo.
“A gente vê pouco acompanhamento dessas meninas, assim, a nível longitudinal, com os médicos presentes no dia a dia, com uma equipe toda coesa e todo mundo trabalhando de forma alinhada. A gente não tem avaliações sequenciais […] nós temos que chamar atenção especialmente sobre a questão da condição de gestão de saúde dessas meninas e começar desde lá de baixo.” — destaca a especialista.
Ela também observa que o crescimento das competições femininas é resultado de um esforço coletivo não só dos clubes, mas também da imprensa, TV e investimento, trazendo mais minutagem e vivência para as jogadoras. Porém, a doutora alerta que o aumento da carga exige prevenção estruturada, começando com avaliações de pré-temporada, como testes de salto que detectam fadiga e risco de valgismo, além de questionários sobre fatores como ciclo menstrual.
A médica esportiva defende um trabalho multidisciplinar, com nutrição, psicologia, fisioterapia, medicina e preparação física atuando de forma alinhada. Segundo ela, o cenário atual ainda é desigual: enquanto jogadores da categoria masculina têm acesso diário à fisioterapia, muitas mulheres enfrentam longos deslocamentos, pouca estrutura e sessões curtas de tratamento, o que prolonga a recuperação e aumenta o risco de nova lesão. Ela reforça que investir em prevenção é mais eficiente e econômico do que lidar com meses de afastamento de uma atleta, especialmente quando se trata de uma jogadora titular.
“Se um menino tem uma lesão, ele vai pra fisioterapia no clube dois, três períodos; a menina pega o ônibus, demora pra chegar, não se alimenta bem, e às vezes quando chega lá não tem nem um pré-treino.” — sinaliza Dra. Flávia.
Pensando em mudanças nos protocolos de treino e avaliação para conter o crescimento de contusões desse tipo, a especialista acredita que essa prevenção de estiramentos de LCA iniciam logo em pré-temporadas eficientes e multidisciplinares, capaz de detectar déficits de força, mobilidade e padrão de movimento antes que se transformem em lesões.
Flávia explica que, ao identificar essas falhas precocemente, é possível corrigi-las com trabalhos específicos fortalecendo o joelho e reduzindo riscos. Segundo ela, quando há alinhamento entre fisioterapeutas, preparadores físicos e médicos, os resultados aparecem, citando temporadas em que equipes reduziram drasticamente lesões de LCA após ajustes estruturais.
Também critica a falta de gestão de saúde no futebol feminino, apontando que reavaliações deveriam ocorrer entre competições e que muitos clubes ainda não têm profissionais acompanhando as atletas no dia a dia, o que cria um cenário desigual em relação ao masculino.
“A partir do momento que nós detectamos esse déficit, a gente não tem que esperar só o momento de ela lesionar para ela ir para o departamento de fisioterapia. Quando a gente pega esse trabalho lá de trás, fazemos uma análise, a gente começa a corrigir isso e começa a colocar essa menina mais forte e conseguimos prevenir essas lesões.” — explica Flávia, médica esportiva com passagens pela Seleção Brasileira e competições internacionais.
“Eu tive cenários que um ano a gente tinha cinco, seis lesões de LCA e no outro ano a gente não teve nenhuma […] Fala-se tanto na gestão da saúde dos clubes masculinos. E cadê a gestão da saúde do clube feminino? Não tem essa gestão.” — manifesta a especialista em medicina esportiva.
Ainda sobre como a lesão pode surgir em uma atleta, Flávia Magalhães explica que posições com mais mudanças de direção, especialmente as meio-campistas, tendem a enfrentar maior risco de contusão. Goleiras também apresentam incidência relevante por fatores como maior percentual de gordura, menor trabalho de força e maior exposição a traumas.
A doutora também complementa abordando sobre as jogadoras mais jovens, comuns nas laterais por terem maior velocidade, da mesma forma podem apresentar riscos ligados à faixa etária. Mesmo assim, ela reforça que o risco é praticamente igual para todas, variando muito mais conforme déficits musculares, alimentação, sono, controle motor e fatores individuais (como ciclo menstrual) do que pela posição em campo.
“A gente faz um trabalho muito preventivo, mas não por posição. É como se fosse assim: o risco é praticamente igual para todo mundo, desde que você saiba que está com déficit muscular, não está se alimentando bem ou dormindo bem. [Contudo] normalmente quem tem mais esse embate de mudança de direção, de giro de corpo, vai mais no meio de campo.” — esclarece a nutricionista esportiva.
Flávia Magalhães tem passagens por clubes feminino como Atlético-MG e América-MG, além das grandes atuações na Seleção Brasileira Feminina em competições internacionais. Tendo em vista do seu trabalho na CBF (Confederação Brasileira de Futebol), a médica esportiva reflete que a entidade mantém foco nos clubes e não nos jogadores, deixando lacunas em ações de prevenção, capacitação e suporte direto às atletas, o que torna cada clube responsável por investir em profissionais qualificados, estrutura e políticas internas para proteger seu próprio elenco e evitar prejuízo financeiro com atletas lesionadas.
Segundo a especialista, faltam políticas públicas e projetos que facilitem o acesso a serviços clínicos e reabilitação adequados, já que, em alguns cenários de maior fragilização em serviços de saúde dentro dos times, muitas jogadoras dependem do SUS e enfrentam longas esperas, comprometendo a recuperação. Esse cenário impacta a longevidade das carreiras, pois atletas que sofrem LCA frequentemente retornam com apenas 60% a 70% do rendimento anterior e, sem reabilitação adequada e contínua, perdem amplitude de movimento e atrasam etapas essenciais do tratamento.
“Tem muitos caminhos para pensar em políticas públicas e em apoio da CBF. O clube precisa ter essa leitura de que, se eu estou com profissionais qualificados, eu tenho mais resultado. Ele será mais vitorioso se tiver um trabalho mais efetivo, e para isso ele precisa de seu elenco todo pronto, à disposição. — diz a doutora.
Ela alerta que talentos podem ser perdidos nesse processo e relembra o caso de Dudinha, jogadora do San Diego Wave, a qual Flávia auxiliou em uma lesão que a atacante sofreu aos 14 anos, onde teve uma recaída por retorno precoce e só conseguiu se recuperar plenamente graças ao período da pandemia da COVID-19, quando pôde seguir todo o trabalho específico com tempo e supervisão adequada, além de um departamento preparado para a recuperação da atleta.
“Eu só deixei a Dudinha voltar quando ela estava pronta. A sorte dela [Dudinha] foi a pandemia, porque ela conseguiu fazer um trabalho específico e se recuperar no tempo hábil.” — cita Flávia sobre o caso de Dudinha, atual atacante da Seleção Brasileira.
A crescente incidência de lesões de LCA no futebol feminino não é fruto do acaso, mas de um sistema que ainda não oferece às atletas a estrutura mínima para desempenharem com segurança. São fatores que envolvem gestão de saúde, formação de base, qualificação profissional, políticas públicas e uma mudança urgente na forma como clubes e entidades tratam o corpo das jogadoras.
Em um cenário onde muitas ainda conciliam longos deslocamentos, pouca assistência e reabilitação incompletas, fica evidente que prevenir também é proteger futuros talentos, carreiras e o próprio futuro da modalidade. Enquanto o futebol feminino cresce em visibilidade, calendário e exigência física, há também a ascensão da responsabilidade das instituições em acompanhar esse ritmo e um compromisso com a equidade, com o desempenho e com a continuidade de histórias que não podem ser interrompidas por falhas estruturais evitáveis.
Foto: Maja Hitij / Getty Images / One Football




