Entre avanços recentes e lacunas históricas, a modalidade vive o desafio de transformar visibilidade em estrutura sólida, e isso começa antes do profissional.
Depois de anos ocupando um espaço reduzido no cenário esportivo, o futebol feminino brasileiro começa enfim a experimentar um movimento consistente de expansão. A presença crescente na mídia, o aumento das transmissões, novas parcerias comerciais e a entrada de grandes clubes ajudaram a reposicionar a modalidade no país. Mas, à medida que essa visibilidade se expande fica evidente que o entusiasmo por si só não garante futuro. A modalidade só se consolidará se a formação de base avançar no mesmo ritmo.
É justamente nesse ponto que surge uma das principais contradições da atual fase: o topo cresce, mas o alicerce ainda é extremamente desigual. Em muitos estados, a formação de meninas depende de esforços individuais, iniciativas comunitárias ou projetos sociais que tentam preencher a lacuna deixada por escolas, federações e clubes. Essa ausência de uma rede organizada desde as primeiras idades cria um caminho fragmentado, que compromete não apenas o desenvolvimento técnico, mas também a permanência das atletas no esporte.
As marcas da proibição histórica ainda pesam
Embora o Brasil seja reconhecido por revelar jogadoras de alto nível, essa tradição se mantém quase à revelia do próprio sistema esportivo. Durante décadas, a prática do futebol feminino foi proibida por lei, entre 1941 e 1979, criando um vazio estrutural que jamais foi completamente reparado. Enquanto outros países criavam ligas escolares, ampliavam espaços de prática esportiva e incentivavam a presença feminina nos campos, o Brasil viveu quase 40 anos de interrupção institucional. O país perdeu gerações inteiras de potenciais atletas, treinadoras e gestoras, um atraso que ainda se reflete na formação de base.
Mesmo após o fim da proibição, a modalidade retomou seu curso sem o apoio de um sistema capaz de garantir acesso, continuidade e formação. A maioria das atletas que hoje compõem as seleções profissionais cresceu em contextos improvisados, sem infraestrutura adequada, sem competições regulares e com poucas referências femininas no esporte. Assim, o país se tornou um grande exportador de talento bruto, mas um importador de métodos, processos e modelos de treinamento.
A comparação com o cenário internacional torna a lacuna ainda mais evidente. Enquanto Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e países nórdicos consolidavam estruturas de desenvolvimento desde a infância, o Brasil só começou a discutir políticas de base femininas de forma mais ampla a partir dos anos 2010. Hoje, muitas meninas têm acesso ao treinamento formal apenas na adolescência, quando, em outras regiões, atletas já acumulam longas temporadas de competições anuais. De acordo com dados da FIFA, em 2019 havia cerca de 15 mil mulheres jogando futebol organizado no Brasil, enquanto nos Estados Unidos esse número chegava a 9,5 milhões.

Clubes tentam avançar, mas esbarram em desafios estruturais
O aumento do número de equipes profissionais femininas impulsionou um movimento importante entre os clubes, que passaram a enxergar a necessidade de investir também na formação. No entanto, o avanço ainda ocorre de maneira desigual. Grandes instituições, com departamentos consolidados, conseguem montar projetos robustos, com comissões técnicas específicas, centros de treinamento adaptados e acompanhamento multidisciplinar. Mas a maioria ainda opera com recursos limitados.
Em muitos clubes, a base funciona em horários secundários, com infraestrutura compartilhada e equipes técnicas reduzidas. Treinadores acumulam funções e precisam lidar com a falta de material adequado, campos em más condições e ausência de um calendário regular. Essa realidade não apenas compromete a evolução das atletas, como também impede que clubes criem estratégias de longo prazo para o desenvolvimento da modalidade.
Dirigentes afirmam que montar uma base feminina exige mais do que recursos financeiros: exige mudança de cultura. Para muitos clubes, as categorias de formação ainda não são vistas como investimento, mas como obrigação regulatória. Isso dificulta a implementação de projetos que vão além do mínimo exigido.
Os efeitos dessa falta de estrutura se tornam evidentes quando as atletas chegam ao profissional. Sem uma formação consistente, muitas encontram dificuldades de adaptação física, tática e emocional. Algumas apresentam defasagens técnicas simples, como domínio, posicionamento e leitura de jogo, habilidades que deveriam ser trabalhadas desde cedo. Outras lidam com problemas de confiança, consequências de treinos esporádicos ou da falta de acompanhamento psicológico.
Por outro lado, clubes que investem em projetos de base colhem resultados mais consistentes. O Corinthians, por exemplo, mesmo que tardiamente estruturou suas categorias Sub‑15, Sub‑17 e Sub‑20, colhendo resultados depois de uma projeção realizada de forma independente. O Internacional, desde 2017, mantém uma base organizada, iniciando a formação de atletas desde os seis anos e garantindo um fluxo contínuo de talentos para o time principal. Essa transição gradual entre categorias permite que as atletas cheguem ao profissional mais preparadas e familiarizadas com o modelo de jogo do clube. Além de fortalecer a identidade da equipe, esse processo reduz custos e torna o elenco mais competitivo. No entanto, a maior parte das jogadoras brasileiras ainda enfrenta um salto brusco da base para o profissional, quando conseguem, de fato, chegar até lá.

Projetos sociais sustentam o que deveria ser responsabilidade compartilhada
Na ausência de um sistema estruturado, os projetos sociais assumem protagonismo que deveria ser dividido com clubes e instituições públicas. São eles que, em muitas regiões, garantem que meninas tenham acesso ao esporte, oferecendo treinos regulares, apoio escolar, alimentação e acompanhamento psicológico. Esses espaços, muitas vezes liderados por treinadoras e educadoras comunitárias, funcionam como redes de proteção. Esses projetos são, ao mesmo tempo, símbolos de resistência e prova das desigualdades estruturais. Eles revelam talentos, mas são extremamente vulneráveis a cortes de financiamento e instabilidade. Quando encerram as atividades, dezenas de meninas ficam sem espaço para desenvolver suas habilidades e, em muitos casos, para permanecer longe de contextos de risco social.
Competição ainda é insuficiente para desenvolver talentos
Embora a criação de campeonatos nacionais Sub‑17 e Sub‑20 represente um avanço importante, técnicos e dirigentes alertam que o volume de competições ainda é insuficiente para atender às necessidades do desenvolvimento das atletas. A falta de torneios estaduais regulares, ligas regionais e campeonatos escolares limita a vivência competitiva, essencial para aprimorar técnica, tomada de decisão e resistência mental. Em alguns estados, equipes passam meses sem disputar jogos oficiais, comprometendo a evolução das jogadoras e dificultando a identificação de talentos em regiões menos estruturadas.
A desigualdade regional é expressiva. De acordo com levantamento do Diagnóstico do Ministério do Esporte, 84% das atletas de categorias de base estão concentradas em clubes do Sul e Sudeste, enquanto Norte e Nordeste permanecem significativamente desfavorecidos em termos de estrutura, calendário competitivo e oportunidades de exposição.

O papel do Estado e a necessidade de políticas estruturantes
O poder público tem papel fundamental no fortalecimento do futebol feminino. Medidas como programas de iniciação esportiva, parcerias com escolas, construção de centros esportivos e incentivos fiscais para projetos de base podem ampliar significativamente o acesso ao esporte. Especialistas também apontam que a formação de treinadoras, a inclusão de meninas em escolinhas mistas e estratégias para reduzir o abandono precoce são determinantes para criar um ecossistema mais sólido e sustentável.
O impacto dessas deficiências estruturais é refletido nos números do setor: segundo levantamento do Ministério do Esporte, apenas 19,2% das atletas adultas femininas no país possuem vínculo profissional, enquanto 47,9% não recebem qualquer salário ou ajuda de custo. O cenário evidencia que, mesmo com a expansão da modalidade em termos de visibilidade, a grande maioria das jogadoras enfrenta condições precárias de trabalho, o que limita o desenvolvimento de carreiras e perpetua desigualdades regionais e estruturais.
Foto: Célio Messias / São Paulo FC




